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Um copo d’água

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Uma madrugada, 3h ou 4h, entre 1998 e 2001. Volto para casa. Sob o céu vermelho, uma única pessoa na rua, um homem que caminha pela calçada, em sentido contrário ao meu, nem devagar nem rápido. Sobre as costas um cobertor. Um morador de rua, imagino. Estaciono em frente ao portão, saio do carro. Ele está perto. Pelo ritmo do andar, pelo olhar projetado em mim, suspeito que pretenda falar comigo. Espero. Ele se aproxima, para. Os trajes retêm minha atenção somente por um fugaz instante; com efeito, um morador de rua. Meus olhos concentram-se nele. Bonito! Muito bonito! Entre 25 e 30 anos, alto, magro, um pouco forte, pele morena, cabelos curtos cacheados, barba. Sua beleza me aturde. Sorri, pede-me um copo d’água. Bonito, simpático. Quando sorri, torna-se mais atraente ainda. Sorrindo, atordoa-me por inteiro. Minhas palavras, meus gestos contrastam com os seus, tranquilos, confiantes. Sim, digo que lhe darei um copo d’água. No meio do caminho em direção ao portão, paro. Há uma garrafa de água mineral no banco do passageiro, da qual bebi apenas um pequeno gole. A garrafa tem mais água do que um copo pode ter. Se ele recusar a garrafa, trago-lhe um copo, decido. Volto, pergunto-lhe se se importaria de beber a água da garrafa, da qual eu tomara um gole. Não, responde sorrindo. Entrego-lhe a garrafa. Sorrindo, ele me agradece e se despede. Permaneço parado, vendo-o atravessar a rua, enquanto bebe a água, e desaparecer ao contornar um edifício. Sozinho, minha vontade era atravessar a rua correndo e ir atrás dele.

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Hoje à tarde, enquanto lia, sentado no sofá, vi um homem em frente ao portão, prestes a tocar a campainha. Ele me viu e, como percebeu que eu o vira, acenou-me. Pelo portão, estende.u-me uma garrafa d’água vazia e me pediu que a enchesse. Ao voltar, lembrei-me da história que narrei. Por onde aquele homem andará?, inutilmente me perguntei, como sempre. Espero que esteja bem, na rua ou fora dela. Talvez ele leia este escrevinhamento e se reconheça como um dos personagens da história. Em minha memória, continuará jovem e belo.

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